# 63: O ensaio (segundo momento)

(A Irmã abana a cabeça, suspira; olha o relógio, pega o telemóvel que está no cima da mesa, volta a pousá-lo; ajeita o cabelo, de forma inconsciente. A Mulher observa-a, sorrindo.)
IRMÃ (fingindo-se exasperada): Ensaiar o pedido de divórcio. (Ri.) E como se faz isso?
MULHER (sorrindo): Fácil. Só tens que fingir que és o meu marido. E ires reagindo como achas que ele reagiria.
IRMÃ (abanando a cabeça): És tão infantil, tu. (Pausa breve. Verdadeiramente curiosa.) E que esperas conseguir com uma palhaçada dessas?
MULHER (irónica): Divertir-te.
IRMÃ (rindo): Estúpida. (Volta a pegar o telemóvel, confirma o ecrã; depois, espreita a sua chávena.) Apetece-me mais chá?
MULHER (abanando a cabeça): Estás à espera de alguma chamada?
IRMÃ (num tom pesaroso, triste): Já me contentava com uma mensagem. (Fica a olhar para o telemóvel, desconsolada.)
(Silêncio. As duas mulheres parecem momentaneamente distantes, quase ausentes; esquecidas da outra.)
IRMÃ (forçando-se a rir): Vamos lá, então. (Tosse. Fala numa caricatura de voz masculina.) Olá querida. Como foi a tua tarde? (Forçando o tom de paródia na voz.) Sabes o que me apeteceu todo o dia? (Tentando conter o riso.) Que me fizesses um broche. (Ri, descontrolada.)
MULHER (chateada mas incapaz de não rir): Vai-te lixar.
IRMÃ (rindo). Disseste que era para me divertir.
(Olham-se, enquanto o riso se vai dissipando lentamente. Permanecem em silêncio, confortáveis.)
IRMÃ (tom de voz masculino, incongruente, mas forçando-se a permanecer séria): Pareces cansada, amor. O dia foi duro?
MULHER (contrariada): Sabes bem que ele não me trata por amor.
IRMÃ (exasperada, no seu tom de voz normal): Queres fazer isto ou não? (Pausa breve.) Tens que me dar algum espaço, que diabo. (Olhando para o telemóvel.) Vá lá, que está a fazer-se tarde para mim. (Pausa breve. Num tom prático, decidido.) Faz de conta que já jantámos e estamos a ver o noticiário. O garoto… (Interrompendo-se.) Onde costuma estar o meu sobrinho, enquanto vocês discutem?
MULHER (irritada): Nós não costumamos discutir. O problema é precisamente esse, como sabes muito bem. (Breve hesitação; tom desconsolado, rendido.) Quem não fala não pode discutir. (Pausa breve. Percorre o olhar pela sala, como se sentisse desconfortável, aprisionada.) O menino está sempre no quarto dele, entretido com isto ou aquilo. Longe. (Sorriso triste.) Para não interromper o nosso silêncio.
IRMÃ (tentando parecer decidida, prática.) Ok. Estão os dois no sofá, a olhar para a televisão, em silêncio. Sem se tocarem. Aquele chato das orelhas grandes a apresentar as notícias do governo, todo exaltado. Ou aquela que veste mal e toda a gente diz que é sexy, não sei porquê. (Disfarça um sorriso.) O meu sobrinho no quarto a jogar playstation, aqueles jogos de carros de que ele gosta. (Pausa breve. Tom exageradamente subserviente.) Parece-te bem assim?
(A Mulher acena com a cabeça, tentando permanecer séria, tentando não sorrir.)
IRMÃ (afinando a sua imitação de voz masculina): Então começa lá. Livra-te de mim.
(Silêncio. De repente, surge um incómodo indefinido, uma tensão entre as duas. A boa disposição dos momentos anteriores desaparece por completo.)
MULHER (num tom hesitante, empertigado): Desculpa, queria falar uma coisa contigo.
IRMÃ (no seu tom de voz normal; irritada): Porra, que início mais merdoso. (Fugindo ao olhar furioso da Mulher.) Desculpa. (No tom de voz masculino, cada vez mais afectado, mais inverosímil.) Continua.
MULHER (hesitante): Acho que precisamos de falar.
IRMÃ (revirando os olhos e abanando a cabeça, não se contendo): Chiça, és pior que um filme americano.
MULHER (ignorando o comentário): Há coisas que não estão bem, que precisamos de resolver.
IRMÃ (voz masculina e grossa, tentando aparentar distracção, quase indiferença): Há algum problema com o garoto?
MULHER (irritada): Com o garoto, não. (Pausa breve.) Não é com o garoto. É entre nós.
IRMÃ (voz masculina): Nós?
MULHER (irritada mas esforçando-se por manter a calma): Sim, nós. Ou achas que está tudo bem?
IRMÃ (voz masculina): Que queres dizer com isso? Claro que está tudo bem.
MULHER (surpreendida): Achas mesmo? (Incrédula.) Acreditas nisso? Acreditas que este casamento ainda é feliz?
IRMÃ (voz masculina): Ainda? Que queres dizer com ainda? (Pausa breve.) Claro que é um casamento feliz. Eu sou feliz. (Hesitando momentaneamente.) Porquê, tu não és?
MULHER (após um silêncio, num tom tímido): Não sei. (Pausa muito breve.) Não sei se sou.
(Pausa. Espreitam-se mas logo desviam o olhar.)
IRMÃ (voz masculina): Desculpa. Apanhaste-me de surpresa. (Pausa breve.) Que queres dizer com isso? Desculpa, mas não percebo. Acho que estou chocado. (Pausa breve.) Não és feliz?
MULHER (hesitante, num tom sonhador, como se pensasse alto; completamente absorvida pela fantasia): Desculpa, não queria magoar-te. Mas nunca falamos sobre isto. Partes do princípio que está tudo bem, de que não há lugar a dúvidas nem hesitações, a perguntas. De que não há nada para falar. (Pausa breve.) E faz-me falta falar, não imaginas quanto.
IRMÃ (voz masculina): Falar? Falar o quê? (Hesitação.) Nós falamos. Fartamo-nos de falar.
MULHER (tentando não se irritar): Não, acho que não nos fartamos de falar. Mas se calhar, até está tudo bem. E a única coisa que falta é mesmo isso: falar um pouco sobre tudo isto, para perceber que as coisas afinal não estão más. Não achas? Enquanto estamos para ali às voltas na cama, sem conseguir dormir, vamos pensando e pensando e tudo parece assustador e sem solução, tudo parece perdido. Mas depois, se falamos um bocado sobre isso, a acompanhar o primeiro cigarro da manhã ou assim, se falamos com alguém que está verdadeiramente interessado em ouvir, as preocupações começam logo a parecer um bocadinho exageradas, um bocadinho apalermadas. Até parece que só por verbalizarmos os nossos medos eles perdem logo um bocado do seu poder.
IRMÃ (voz masculina): Desculpa. A culpa é minha. (Hesitação.) Não fazia ideia que te sentias assim.
MULHER (irritada, subindo o tom de voz): Claro que não sabias. (Olhando em redor, envergonhada. Baixando a voz.) Claro que não sabias. Esse é que é o problema. Eu amo-te e tu amas-me mas a verdade é que, de repente, esse amor passou a ser uma espécie de entidade separada, algo que existe sem a nossa intervenção, sem o nosso esforço. Existe e pronto. (Pausa breve. Confusa.) Amámo-nos e isso foi tão forte que o amor passou a ser auto-suficiente. Independente de nós, da nossa vontade. Uma espécie de amor de subsistência, ou assim.
IRMÃ (voz masculina): Amor de subsistência? Não percebo onde queres chegar. Não percebo o que estás a tentar dizer-me.
MULHER (baixando ainda mais a voz, ignorando a interrupção): Amamo-nos, sim. Mas já não nos conhecemos. (Pausa breve.) E isso é que é assustador, isso é que me atormenta. (Aproximando-se, como se estivesse mesmo em frente do marido): Acredito que nos amamos e que esse amor é verdadeiro e forte e eterno e tudo isso. Mas amor não é felicidade. Amar e ser amado não é suficiente, não é isso que é ser feliz.
(A Mulher desvia o olhar, talvez arrependida de ser ter revelado demasiado. A Irmã olha-a, com surpresa, com temor; com respeito, também. O silêncio é longo, desconfortável.)