Legenda # 08: Morrer num dia bonito

(A partir de uma fotografia de Maria João Dias.)


Claro que nos dias bonitos também se morre; e quando acontece alguém morrer num dia bonito, é particularmente difícil aceitar essa morte, por nos parecer mais desconcertante e mais insuportável, mais injusta, mais desnecessária, do que se ocorresse na cinzentude de uma madrugada chuvosa de inverno. Porque se ninguém está preparado para morrer seja quando for, pensa-se ainda menos do que o habitual em morte num dia bonito; é, portanto, perfidamente traiçoeira a forma como a morte cumpre o seu propósito quando menos se espera (afinal, todos ingenuamente acreditamos que nos dias bonitos, naqueles dias esplendorosamente deslumbrantes, a morte estará de folga, algures). Se alguém morre num dia bonito não é apenas a morte, em si, que nos desconcerta; é, também, a traição e a deslealdade que essa morte contém e representa.
Mas nem parece que estou a falar da morte da minha filha. E é isso que está em questão: a morte da minha filha, aos dezasseis anos. Junto palavras como se isso fosse fácil e inofensivo, conjugo-as em devaneios e teorias inconsequentes, como se fosse uma professora estagiária de filosofia, falando sozinha em frente de um espelho decrépito num lúgubre quarto de pensão, ensaiando a sua primeira aula; e que sei eu de filosofia, afinal? Que se foda a filosofia. O que sei é que a minha filha morreu num dia bonito, isso sei; e desconfio que a filosofia pouco tenha a acrescentar ao que sei, pelo menos neste caso específico. De qualquer forma, que nos anima a vida pacata e inconsequente, se não os devaneios e teorias inconsequentes? Talvez sejamos todos professores de filosofia, sós e levemente esperançosos, entretidos em frente de espelhos decrépitos; à espera que alguém nos mande calar.

Era, portanto, um dia bonito. Uma manhã de primavera, daquelas em que o azul do céu nos parece magnético e hipnotizante, à distância de um toque: se fecharmos os olhos e estendermos muito a mão talvez não consigamos tocar-lhe mas quase acreditamos que poderemos, pelo menos, senti-lo. Não posso jurar mas julgo que, algures, haveria uma nuvem branca, apenas uma; e não há nada mais desconcertante – mais aconchegante – que um imponente céu azul acompanhado de uma única nuvem branca. Poderia ainda falar do brilho e reverberação dos raios de sol, da forma como pareciam planar mesmo à nossa frente, conferindo uma sensação de ténue e quase imperceptível movimento à irredutível imobilidade do horizonte, da paisagem, do mundo; poderia, também, falar de como a brisa agitava as árvores ou de como essas mesmas árvores acolhiam nos seus ramos pequenos bandos de desassossegados pássaros esvoaçantes e de outras irrelevâncias paisagísticas, poderia falar durante muito tempo de todo o género de irrelevâncias. Mas, na verdade, não preciso de o fazer porque todos sabemos o que significa um dia bonito, todos experienciámos a volúpia de nos sentirmos plenamente vivos e revigorados, invencíveis, num dia bonito.
Não quero falar de dias bonitos, da mesma forma que não quero filosofar em frente de um espelho. Aquilo de que quero falar é do silêncio e da quietude, do vazio, da impotência, do medo que se seguiu ao despiste do carro. O céu lá continuava, azul e inútil, acompanhado pela sua nuvem branca (que, de repente, irá ficar acompanhada de outras, vindas não se sabe de onde, agoirentas e tenebrosas, quase imperceptivelmente menos brancas; mas isso será mais tarde: haverá um momento em que nuvens inundarão o azul do céu e o dia ficará, por isso, menos bonito; e as pessoas dirão que o dia ficou menos bonito, apenas porque apareceram umas nuvens; não importa que haja vidas despedaçadas, aquilo que entristecerá realmente as pessoas são as nuvens brancas). O sol não parou de brilhar e a brisa não se suspendeu; as árvores lá permaneceram, morrendo de pé, que é o que fazem durante toda a sua vida. Tudo como antes, tudo igual, tudo tranquilo e sereno: porque a verdade é que o mundo, mesmo nos dias bonitos, não se incomoda absolutamente nada com as pequenas desgraças dos homens. Aquilo de que quero falar – mesmo que não interesse ao mundo – é do momento em que percebi que a minha vida terminava, irremediavelmente; para logo recomeçar: mas tão diferente do que era antes, do que sempre fora e do que sempre pensei que seria, que ainda hoje não a reconheço. 
E tudo isto num sábado, que é o dia em que sempre desconfiamos que o mundo está a começar e jamais acabará, o dia em que não conseguimos deixar de nos sentir positivos e optimistas, felizes; agradecidos. Tudo isto num sábado, o dia em que assumimos a convicção (presunçosa e arrogante e, por isso, inconfessável; mas talvez compreensível) de que o nosso mundo jamais acabará; e afinal estamos correctos: o mundo não acaba, nós é que acabamos.

Havia poucos carros na auto-estrada e não íamos em excesso de velocidade nem distraídos nem a falar ao telemóvel nem a discutir nem com sono nem alcoolizados; nada de anormal aconteceu, não houve alerta ou suspeita, não houve aviso ou premonição, quase poderia dizer que não houve culpa. Quase. Mas como é possível não haver culpa? Ou, mesmo que não haja, como é possível não culpar alguém? Culpar é, muitas vezes, a única forma de conseguir suportar, uma espécie de aspirina que não cura mas alivia e a que nos habituamos irremediavelmente. Culpamos, logo sobrevivemos.  
Nem sei em que pensava, qual foi o meu último pensamento antes de tudo se transformar (e se pudesse escolher, qual teria sido?); tenho tentado recordar, apenas por teimosia e na certeza de que não serei capaz, mas não consegui reviver aquele último momento; e ainda bem que não consegui, pois a decepção seria inevitável, tão avassaladora como a dor. Suponho que deveria ser um qualquer pensamento insignificante, porque a verdade é que a maioria do que penso é insignificante. Talvez pensasse no que iria preparar para o almoço, talvez pensasse como preferia ter ficado em casa e no que estaria a fazer se lá estivesse, talvez pensasse que o dia parecia demasiado bonito e em como os dias demasiado bonitos podem ser um pouco assustadores, talvez pensasse em algo para dizer, talvez pensasse que deveria ter vestido outra roupa qualquer, talvez pensasse que antes as manhãs de sábado eram quase sempre sinónimo de sexo e conforto e letargia e saciedade; certamente que pensaria alguma coisa porque ainda não consegui descobrir uma maneira de não pensar, de simplesmente desligar o pensamento; talvez pensasse nisso mesmo: como desligar o pensamento.
E de repente o carro estava a voar. Voou e todos devemos ter gritado incontrolavelmente, que é a única coisa que se consegue fazer quando se vislumbra a iminência da morte; gritar e talvez agitar os braços de forma desarticulada e frenética, deve ter sido tudo o que fizemos. Quando o carro aterrou na relva verde e se imobilizou, o que primeiro notei foi o silêncio; um silêncio visceral e irremediável, o silêncio que deve ter existido antes de se ter inventado o som; e devo ter pensado que estava morta, precisamente por causa desse silêncio. Mas logo depois comecei a sentir focos de dor perfurando-me o corpo, pequenos no início mas alastrando, insidiosos e destrutivos, corroendo; foi quando percebi que, afinal, deveria estar viva, porque é suposto a morte ser indolor (se não o for, para que servirá?). Mexi-me um pouco, tentando perceber o que poderia estar irremediavelmente danificado no meu corpo (com os danos do espírito preocupar-me-ia mais tarde), analisar os estragos, perspectivar o futuro imediato; simultaneamente, senti o cheiro da relva, intenso e reconfortante; penso que foi isso, algo tão irrelevante e banal como o cheiro da relva, que me tranquilizou um pouco, recordando-me que sempre existem constantes, elementos estruturais que não mudam nem oscilam nem variam nem defraudam, que nos sustentam e amparam nos momentos de dúvida profunda, de susto desamparado; mesmo que sejam tão frágeis e ténues, tão intangíveis, tão subjectivos e insubstanciais como o cheiro da relva.
Foi então que abri os olhos. A beleza do dia entrou por mim adentro, trazendo consigo os primeiros indícios de consciência; e com a consciência, uma revelação: naquele momento de perigo, o meu primeiro pensamento não fora para a minha filha; nem o segundo, nem o terceiro. E só então recordei que havia gente comigo, ali mesmo ao meu lado, e não uma gente qualquer mas a gente que eu mais amava; ali ao meu lado: talvez mortos. E eu a pensar em relva.

Mas afinal havia um som a perturbar o silêncio. O som de música, quase inaudível mas, apesar de tudo, perceptível e próximo, como se tivesse que atravessar todo o mundo para chegar até mim: a minha filha, lá no banco de trás do carro destruído, ainda ouvia música; quando finalmente a olhei, o seu rosto parecia tranquilo e imperturbável, sereno; tinha os olhos fechados, mas era um fecho de olhos mais próximo do sono do que da morte (foi o que pensei, apesar de não saber como os distinguir); e os auscultadores cor-de-rosa permaneciam enfiados nas suas orelhas, deixando escapar o vago rumor de música dançável. Vago mas reconfortante, infinitamente esperançoso.
Outros sons se tornaram lentamente perceptíveis, atenuando o zumbido agreste do silêncio. Gemidos que demorei alguns momentos a localizar mas que eram, afinal, provenientes de muito próximo: a poucos centímetros de mim, Afonso acordava do desmaio (ou da própria morte, talvez), lutando para reconquistar um pouco de consciência; perguntei-me quais seriam as suas primeiras palavras, quando conseguisse pronunciá-las. Havia também vozes, excitadas e tensas, vindas do exterior do carro; pessoas que se aproximavam, talvez a correr, não sei se para salvar alguém ou apenas testemunhar uma desgraça; identifiquei a palavra «ambulância», dita por mais do que uma pessoa; depois, alguém muito próximo disse: «Ai cum caralho, que deve estar tudo morto.» Também o ruído do tráfego se tornou perceptível, carros que continuavam a fustigar a auto-estrada com os seus pneus gastos, gente a quem a desgraça alheia não incomodava (ou talvez apenas gente com pressa, demasiada pressa para se distrair com desgraças). E havia um pássaro algures, fazendo o que os pássaros sempre fazem.
Continuava a olhar o rosto adormecido da minha filha, tentando escutar algo da sua música; perguntando-me se lhe deveria tocar e, logo de seguida, odiando-me por ainda não a ter tocado, odiando-me por não a estar a abraçar, a acordá-la com beijos, a segredar-lhe que não se preocupasse, que tudo iria passar. Do lado de fora, alguém disse (excitado): «O gajo está a mexer-se, é bom sinal.» E logo depois, uma mulher falou para nós através do vidro, falou para o interior do carro como se falasse para um mundo longínquo, para dentro de um aquário: «Calma, não saiam daí.» Sair? Gostaria de ter conseguido sorrir, não sei bem porquê; talvez porque sorrir é quase sempre melhor do que qualquer outra coisa que se possa fazer. E depois outras pessoas falaram, há sempre gente a falar nas vizinhanças de uma desgraça, mas eu deixei de ouvir pois acabara de reparar que não havia vidros partidos e pensava como a inexistência de vidros partidos certamente significaria que a gravidade do acidente não seria assim tão avassaladora; ninguém morre num acidente em que os vidros ficam intactos, toda a gente o sabe. Pensava nisso, na ausência de vidros partidos, e escutava o rumor da música proveniente dos auscultadores cor-de-rosa. Sabia que alguma coisa acabaria por acontecer.

Durante todo o tempo em que decorreram as operações de desencarceramento houve sempre uma sirene a gemer, mesmo ali juntinho a mim; alguém se teria esquecido de a desligar, certamente; ou seria para manter a morte à distância? E a primeira coisa que os bombeiros fizeram quando chegaram junto do carro foi partir os vidros (e isso, por si só teria estilhaçado toda a minha esperança, se eu tivesse ainda alguma); diziam coisas que eu não percebia, davam instruções, esforçavam-se por demonstrar uma infinita eficiência; e eu pensava nos vidros, com pena de os saber partidos. Pensei, absurdamente: repararão na minha roupa? Afinal, qual é a roupa apropriada para se usar quando se é vítima de um acidente? Havia também um médico aos gritos, tentando convencer-se que sabia o que estava a fazer, que a sua presença poderia fazer a diferença; talvez soubesse, talvez fizesse. Quase cedi à tentação de me fingir inconsciente e esperar que tudo avançasse normalmente, pois é essa a função dos bombeiros, dos médicos: repor a normalidade; que diferença faria, afinal, a minha consciência, a minha presença: poderiam os meus olhos abertos anular a desgraça, reverter a tragédia?
Portanto, permaneci com os olhos abertos, tão assustada que nem o medo sentia; à beira da morte mas de olhos abertos, teimosamente. Porque é nos momentos de maior perigo, de total incerteza, de absoluta falta de domínio sobre os acontecimentos e o tempo, que os nossos verdadeiros instintos se manifestam, se sobrepõem, nos dominam; aquilo que verdadeiramente somos, percebemo-lo quando estamos perante a iminência da nossa morte. E a minha essência é, tudo o indica, manter os olhos abertos; não desisto, não fujo, não me supero, não me transcendo, não me liberto, não me descontrolo; limito-me a manter os olhos abertos, talvez porque se os fechasse poderia não querer voltar a abri-los. Abri-los para quê, mesmo quando os dias são bonitos? Talvez maior que o medo de enfrentar a morte seja o medo de nos conhecermos verdadeiramente; e todos sabemos que a melhor forma de não ver é manter os olhos abertos.

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