Facelist

(A partir de um quadro de Joana Lucas)





– Então, escrevi na face. Meti-me em frente ao espelho e, cuidadosamente, escrevi uma lista de compras. No rosto. Parece-lhe esquisito, isto?

– Parece-me esquisito, sim.

– Pois foi o que fiz. Bolachas, iogurtes, tomates, champô, chocolate. Tudo muito bem escrito, com letrinha legível.

– Porquê uma lista de compras?

– Porque estava de saída para o supermercado. E foi o que fiz, segui para a rua e fui andando pelos passeios, sem pressas nem hesitações, a desfilar um pouco, a ver o que acontecia; como um adolescente com uma tatuagem nova. E sabe o que aconteceu, doutor?

– O que aconteceu?

– Nada. Nadinha. Ninguém ligou a mínima atenção; não houve olhares ou sorrisos ou comentários, abanos de cabeça incrédulos, expressões pesarosas de quem acabou de surpreender um sintoma inequívoco de doidice. Nada. Apenas indiferença e desinteresse ou, nalguns casos, suspeito que não muitos, um esforço consciente em fingir que não se reparou e seguir em frente, não vá o disparate ser contagioso.

– E isso surpreendeu-o?

– Um pouco. Não é propriamente uma surpresa mas é desconsolador perceber como as pessoas se julgam tão interessantes e singulares, tão importantes, tão não sei quê que lhes basta centrarem-se exclusivamente em si mesmas, ignorando tudo, todos. Como se se julgassem auto-suficientes. Não lhe parece uma grande arrogância que alguém marche pelo mundo sem sequer olhar as pessoas com quem se cruza?

– E não será igualmente uma presunção considerar que temos algo de interessante em nós, algo que mereça o olhar do outro, a atenção do outro, o tempo do outro?

– Talvez, agora apanhou-me. Mas a verdade é que gosto de olhar, gosto de tentar perceber algo das pessoas, adivinhar um pouco delas, fantasiá-­las também; tentar decifrar o seu mistério. Como estar a ver um filme na televisão mas sem ligar ao som ou às legendas; olhar, simplesmente, e tentar perceber um pedaço da estória. Mas estou a devanear, por favor não ligue.

– A vida não é um filme. Não é uma narrativa linear. Talvez nem uma narrativa seja, sequer.

– Pois não. E é pena. Mas regressando à estória da lista. Como estava a contar, quase ninguém olhou; e os que olharam, ignoraram o que viam; suponho que ninguém perguntou a si próprio: «Por que anda este gajo com palavras escritas no rosto?» Nada disso, quem olhou aceitou de imediato aquilo que viu como legítimo, como aceitável, como normal. E agora, pergunto-lhe: o que é o normal? O que é a normalidade?

– É uma boa pergunta.

– Suponho que, na perspectiva desta gente, seja tudo aquilo que não a incomode, que não a perturbe, que não a force a reagir. «Normal é tudo o que não me chateia», dirão. É uma questão interessante, esta; não acha? Para que serve a normalidade, afinal? Será, talvez, uma simples questão de número, de quantidade. Se toda a gente escrever a lista de compras na cara, passa certamente a ser normal, ou não é? E já viu o papel que se pouparia, doutor? Enfim, estou a brincar consigo.

– Porque fala em gente? Essa gente. Esse tipo de discurso é uma forma algo pretensiosa de se distanciar daquilo que designa de normalidade, uma forma de se considerar especial.

– Talvez. Mas não é isso que todos ambicionamos? Que alguém nos considere especiais?

– Para quê?

– Porque precisamos de nos sentir especiais. E, para que isso aconteça, precisamos que o outro seja o nosso espelho. Porque há pessoas que funcionam como espelhos, olhamos para elas para nos conhecermos a nós próprios e não tanto a elas; como acontece consigo, doutor. Ajuda-me a conhecer-me; é para isso que venho aqui, não é?

– Se todos nos sentíssemos especiais, acabaríamos por nos centrar em nós próprios. Excluiríamos o outro, recorreríamos a ele apenas como uma espécie de espectador e validador daquilo que cremos ser a nossa especialidade. Como se o mundo fosse uma espécie de passagem de modelos em que todos, sem excepção, são modelos. Seria uma existência triste, não? Ou pior do que triste: inconsequente. Não era precisamente isso que estava a criticar há pouco? É por isso que gosto da ideia de janela. Precisamos de pessoas que funcionem como janelas, que nos permitam sair de nós, que nos convidem ou desafiem a ver para além de nós. Porque precisamos de olhar para dentro mas também para fora; em simultâneo, se possível.

  – Por vezes, olhamos por uma janela e vemos o mundo a desfilar, a convidar-nos, a envolver-nos, a seduzir-nos; mas basta focar o olhar de certa forma e, ao mesmo tempo que nos assombramos com aquilo que está para além de nós, conseguimos ver um vislumbre de nós próprios reflectido na janela, como se estivéssemos perante um espelho algo deformado. Abrimo-nos ao mundo sem perder a noção de quem somos.

  – Exacto. Não nos fechamos em nós. Mas interrompi o relato da aventura. Falava de normalidade.

– Sim. Lá vou eu com o rosto escrito e nem um olhar curioso, perscrutador; vou pensando em como é difícil provocar uma reacção. E se nem um olhar se consegue provocar, como desencadear um sorriso? Pessoas que não olham são pessoas que não sorriem, pessoas que não sorriem são pessoas que não se interessam; e se não se interessam, não olham; se não olham, não sorriem; e etc., doutor, etc.

– A tal passagem de modelos.

– Pois. Mas adiante, deixe-me contar-lhe como prosseguiu o meu exerciciozito. Lá cheguei ao supermercado, com a minha facelist; deslizei pelos corredores empurrando um daqueles carrinhos gigantes, para onde fui colocando as poucas compras que tinha rabiscado na cara; um pacote de bolachas, quatro iogurtes, três tomates dentro de um saco de plástico, um frasco de champô, uma embalagem de chocolate. Por ali andei, desfilando entre donas de casa enfadadas e reformados semiadormecidos, observando os gestos desconsolados das raparigas que repunham o leite e o bacalhau; por ali andei, à espera não sei de quê, à procura não sei de quê. A fazer o mesmo que todos os outros, suponho: gastar tempo. Depois, tive uma ideia súbita: peguei no chocolate e fui devolvê-lo à prateleira, onde o arrumei cuidadosamente. Pergunte lá porquê, doutor.

– Porquê?

– O plano era este: ver se a moça da caixa repararia que um dos itens da lista, neste caso o chocolate, estava em falta; e se reagiria.

– A tentar ser janela, de certa forma.

– Sim, talvez. Tem o dom de ver simbologias em tudo, já reparou? E afinal, tudo o que fazemos acaba por ter uma intenção e uma simbologia; tudo o que fazemos é uma metáfora. Não? Aproximei-me e depositei as compras, ela carregou num botão e aquele mini tapete rolante começou a deslizar; a rapariga, que tinha o rosto apático e uma expressão distante, disse bom dia sem me olhar, perguntou se tinha cartão de cliente mas não aguardou resposta, agarrou o saco de tomates e logo depois o resto das coisas; disse qual o valor a pagar e ficou à espera. Poderia ter dito: «Olhe que se esqueceu do chocolate»; e sorrir. Não disse, não sorriu.

– Era bonita?

– Pergunta curiosa, doutor. Muito bonita.

– Porque não o terá olhado? Alguma teoria?

– Nem por isso. Talvez estivesse simplesmente cansada de olhar e não ver nada; para quê continuar a olhar, então? Dei-lhe o dinheiro, os nossos dedos tocaram-se; mas a reacção dela ao toque do meus dedos foi exactamente a mesma que ao contacto das moedas: nenhuma. Não acha triste, doutor, que o facto de duas pessoas se tocarem não tenha consequência absolutamente nenhuma?

– Acho.

– Eu também. Uma pessoa que não olha e que não reage ao toque é alguém que está vivo? Ou nem por isso?

– A quantidade de gente que está apenas mais ou menos viva é impressionante.

– Afinal também fala em gente. Discurso pretensioso, doutor. Cuidado.

– Acontece. E depois, que se passou?

– Que se passou? Nada, é óbvio. Lá segui com o saco das compras. E fui pensando no que teria sido diferente se a rapariga tivesse falado do chocolate, se tivesse sorrido; que significariam esses gestos, que consequências desencadeariam? Representaria o estabelecimento de alguma espécie de empatia entre nós? E essa empatia simbolizaria algo para ambos? Seria um denominador comum, como se costuma dizer? Talvez até um ponto de partida para qualquer coisa? Enfim, fantasias. Se a moça tivesse dito qualquer coisa, porque haveria depois de acontecer algo?

– Gostaria que tivesse acontecido algo?

– Mas o que poderia acontecer, afinal? Deduzir (ou pior: desejar) que começaríamos a conversar e inevitavelmente apreciaríamos essa conversa, e que daí a combinarmos qualquer coisa seria um pequeno passo, talvez seja um exagero da minha parte, não?

– Uma fantasia.

– No fundo, há aqui algum motivo para reflexão; não me refiro à questão da moça do supermercado propriamente dita mas à dúvida filosófica, digamos assim, subjacente. Já percebeu a que me estou a referir, certamente.

– Nem por isso.

– Como cativar o interesse de alguém? Essa é que é a questão relevante, e de certeza que ninguém descobriu a resposta, porque se houvesse resposta (se alguém tivesse descoberto qual o princípio activo do interesse, se me permite a ironia) também já teriam inventado os comprimidos correspondentes, e já mos teria prescrito.

– Interesse por prescrição médica? Interesse químico? Interesse induzido? Interesse artificial? E porque não fazer transfusões de interesse, em caso mais graves? Intervenções cirúrgicas. No fundo, tratar-se-ia de arranjar forma de não nos preocuparmos em ser interessantes, tal como não nos preocupamos com os mecanismos do crescimento do cabelo. É uma teoria com muito potencial, esta. 

– Não seja irónico, doutor. É um assunto muito relevante. Como fazer para que alguém nos olhe e, mais importante, mantenha o olhar fixo em nós durante um momento, durante o tempo suficiente para perceber que valeu a pena ter olhado? Comprimidos facilitadores de interesse, isso é que dava jeito que alguém inventasse, e não gelados com sabor a couve ou telemóveis do tamanho de cabeças.

– Retirar o factor de imprevisibilidade dos relacionamentos seria condená-los à irrelevância.

– Como sabe? É o mesmo que afirmar que deus é louro. Apenas uma opinião, por mais convicta que seja. Porque a verdade é que não sabe, é impossível saber. Mas regressando à minha estorieta. Pode ser, doutor? Lá segui pelos mesmos passeios de antes, cara escrevinhada e saco de compras a balouçar na mão, cruzando-me com gente que se não era a mesma de antes, parecia. Se ninguém nos sorri, como podemos distinguir as pessoas umas das outras? Já pensou nisso?

– O sorriso como marca de individualidade? Mais uma boa teoria. Está inspirado.

– Tenho demasiado tempo livre, o que é um problema. Deveria arranjar um passatempo. Pesca ou jardinagem ou observação das estrelas; algo que retirasse o foco de mim próprio. Mas ainda não aconteceu; e portanto, penso. É assim que ocupo o tempo livre. A pensar. A imaginar. Por exemplo. Imaginei que se fosse eu a encontrar alguém com o rosto rabiscado, por certo não resistiria a fazer perguntas. «Quem escreveu isso e como reagiu quando lhe pediste para o fazer?»; «Que tipo de caneta usou?»; «Isso magoa ou incomoda?»; «É difícil escrever na pele?”». E por aí adiante, infindáveis dúvidas sem importância nenhuma. Porque a pergunta é a materialização do interesse que temos pelo outro; perguntar é encarar o outro como uma janela.

– Inspiradíssimo.

– Então porque não está a tirar notas? Estou a brincar, doutor. Desculpe lá. Bom. Continuei a imaginar. Fui imaginando o que poderia acontecer se, em vez da lista de compras, escrevesse o número de telefone ou o endereço de e-mail no rosto. Alguém os registaria? Alguém se daria ao trabalho de telefonar, de escrever? E que diria?

– É uma ideia muito curiosa. De ficção científica, talvez. Mas a ficção científica sempre se baseou na hiperbolização dos nossos medos mais profundos.

– Prefiro poesia. Ainda me entusiasmei durante uns três ou quatro segundos mas logo admiti que não teria coragem para o fazer. Consegue imaginar porquê?

– Porquê?

– Seria correr um risco enorme, não? E se ninguém interagisse comigo (odeio esta palavra mas paciência), se ninguém reagisse? Teria que assumir isso como um fracasso, mais um tremendo fracasso. E, depois, teríamos aqui trabalho para uns três anos.

– Mas e se houvesse uma reacção?

– Talvez não soubesse o que fazer. Talvez não soubesse como reagir à reacção. Talvez fugisse, que de certa forma é o que sempre faço, não é? Mas não quero ir por aí agora, está bem? Deixe-me fugir mais uma vez.

– Muito bem, falaremos disso mais tarde. O que aconteceu de seguida?

– Apressei-me a chegar a casa; lavei a cara e comi as bolachas que comprara enquanto ia navegando pelo facebook, que é um sítio que me faz bem porque me recorda que não sou a única pessoa do mundo com uma vida completamente vazia. Tenho que lhe mandar um convite, devíamos ser amigos. Não se ria.  

– No facebook, toda a gente se julga uma espécie de psiquiatra. Seria apenas mais um, entre tantos outros.

– Por acaso, já reparei nisso. É um pouco perturbante.

– E que aconteceu no facebook?

– Ia-me distraindo um pouco mas a estória de escrever na face ainda não estava esquecida. O que me causava confusão é que ninguém tivesse sorrido, absolutamente ninguém. Porque é que as pessoas deixaram de sorrir, doutor? À noite, toda a gente ri mas é porque estão bêbados ou porque sabem que vão fazer sexo, mas se uma pessoa andar pela rua às três e meia da tarde não encontra um único rosto sorridente. Sabe o que penso? A situação é tão desesperante que devia haver uma espécie de serviço público do sorriso.

– Mais uma ideia curiosa. Simultaneamente ficção científica e poesia.

– Mas veja lá se não faz sentido. Assim como há polícias que passam multas e enfermeiras que dão injecções, deveria haver gente que andasse por aí a desencadear sorrisos.

– Profissionais do sorriso.

– Principalmente às três e meia da tarde, que é o momento mais triste do dia. Um serviço público a que se pudesse recorrer, como se recorre aos hospitais e tal. Mas algo que não fosse apenas um direito, como a saúde, deveria ser também uma obrigação, como pagar impostos. Uma espécie de tolice por decreto, para aliviar o stress dos dias; o stress do vazio, como escreveu alguém numa revista de televisão que vi no cabeleireiro.

– Nas revistas também todos são psiquiatras.

– Já imaginou se o diário da república começasse a publicar uma secção de anedotas? Não vejo nenhum partido a propor uma coisa destas, e é pena. É pena, doutor. Ou então, podia ser feito de um modo mais informal. Imagine que as pessoas se organizavam de maneira a que em cada família, ou em cada grupo de amigos, existisse alguma espécie de rotatividade entre os seus elementos, uma escala de turnos, para que todos os dias houvesse sempre alguém com a responsabilidade de fazer um disparate qualquer; um disparate que desencadeasse o sorriso dos outros, algo que quebrasse a cinzentude dos dias e atenuasse o desânimo das três e meia da tarde.

– É uma ideia que, só por si, provoca um sorriso.

– O senhor, que é psiquiatra e deve perceber destas coisas, diga-me lá: porque sorriem as pessoas tão pouco?

– Demasiada consciência de si próprias, talvez. Incapacidade de se libertarem dos seus pensamentos e racionalidades, dos seus medos, das suas ansiedades. Talvez as pessoas estejam demasiado fechadas em si próprias, demasiado auto-conscientes. Demasiado reféns de si.

– Agora é que o doutor falou bem. A maior prisão de alguém é a sua própria mente. Também penso dessa forma. E é raro olharmos para o outro, não é? Olhar de verdade. Sempre que alguém pergunta como estamos (e é raro, ninguém quer saber; ou melhor, até se pergunta mas ninguém quer verdadeiramente conhecer a resposta), respondemos que estamos bem. Mas se estivéssemos efectivamente bem, teríamos sorrido mal víssemos a pessoa e, consequentemente, a pergunta teria sido desnecessária, não chegaria a ser formulada.

– Talvez não queiramos, simplesmente, demonstrar fraqueza e vulnerabilidade, talvez não queiramos denunciar-nos. É mais fácil fingir que estamos bem do que explicar por que motivo estamos mal; até porque há alturas em que não existe nenhum motivo.

– Verdade, doutor. Mas sabe outra coisa que pensei? E se, pelo contrário, somos todos boas pessoas, que se retraem para que a nossa tristeza não contagie aqueles de quem gostamos, que não têm culpa nenhuma dessa tristeza? Como vê, não me canso de devanear; e nunca chego a conclusão nenhuma, naturalmente. Mas vou fazendo perguntas, isso vou, nunca me canso de fazer perguntas. Por exemplo. Já reparou neste paradoxo? Tendemos a guardar a nossa tristeza para nós próprios, de certa maneira apenas nos permitimos estar tristes quando estamos sozinhos, para nos protegermos, para protegermos os outros; mas, afinal, de que serve estar triste se não temos com quem partilhar essa tristeza?

– De que serve estar triste? A tristeza não é uma escolha, muitas vezes será uma inevitabilidade.

– Isso já não sei. Desconfio que a tristeza é, maioritariamente, uma opção, ou até uma tentação. É o que penso. Mas não me vou pôr a discutir isso com um psiquiatra. Seja ou não seja uma opção consciente, tendemos a guardar a tristeza para nós próprios. Por isso é que gostamos tanto do facebook, que é um sítio onde toda a gente parece bela e feliz e inteligente, mesmo as pessoas que têm vidas tristíssimas acreditam que são belas e felizes e inteligentes, porque se assim não fosse como poderiam ter mil setecentos e oitenta e nove amigos? Não partilhamos a nossa tristeza com quem amamos (talvez porque não amemos o suficiente, talvez porque suspeitemos que aqueles que amamos não nos amem o suficiente) mas já não nos custa nada dissimular essa tristeza entre tristezas anónimas. Enfim, doutor, paradoxos.

– Há enorme riqueza na contradição, na complexidade, no paradoxo. 

– Pois, é capaz de haver. Mas regressando à lista de compras, que se faz tarde e ali a sala de espera deve estar a abarrotar.

– Como terminou essa estória, então?

– A verdade, acabei por perceber, era afinal banalíssima, não havia mistério nenhum: ninguém ligou aos meus rabiscos no rosto porque, naturalmente, quem se deu ao trabalho de os olhar, logo deduziu que se tratava de uma tatuagem, uma simples e banal tatuagem. E já ninguém liga a tatuagens, que não se sabe bem se servem para atrair o olhar ou desviar a atenção.

– É uma possibilidade.

– Ninguém percebeu a minha intenção, que era a de provocar um sorriso aqui, outro ali; intenção bem modesta, parece-me; e benigna. E já agora, entre os sorrisos, lançar pela rua uma pequena provocação, uma interrogação silenciosa: se nos esforçamos tanto para que os rostos não transmitam expressões e sentimentos, porque não usá-los para qualquer coisa útil? Transmitir recados, por exemplo.

– Recados?

– Porque não? Ser lista de compras sempre é ter alguma utilidade prática, não acha? Já se serviu para alguma coisa, não ficou o dia completamente desaproveitado. Até se podia usa a face para fazer recados às pessoas, para transmitir avisos ou informações ou pedidos; alugar o espaço, fornecer um serviço. Não ria, doutor.

– Você anda realmente com demasiado tempo livre.

– Olhe lá, já que estamos a falar nisto, que tal passar a receita desta semana aqui no meu rosto? Que me diz? Gostava de ver a expressão da moça da farmácia, já estou a imaginar; pior é que o selo pode descolar-se com a transpiração e depois ela não me avia. Mas valia a pena tentar, doutor. Não acha? Vá, faça-me lá sorrir.

Horizontes infinitos

(A partir de uma foto de Maria João Dias.)


Ela estava à janela quando cheguei. Olhei-a durante um instante, em silêncio. Depois, disse-lhe: «Amo-te.» E sorri, admirando a elegância com que se virava para mim. Mas ela olhou-me sem surpresa nem alegria, pensativa, distante; contrariada. Não sorriu. Disse: «Sempre que afirmas que me amas, aprisionas-me mais um pouco. Porque dizê-lo significa, na verdade, denunciar o teu desejo de que eu permaneça indefinidamente como estou, para que assim possas continuar a amar-me. Desejas-me imutável, congelada num momento eterno; é isso que amas, esse momento. Sempre achei que dizer que se ama alguém é negar-lhe a possibilidade de mudança, não concordas? Mas não quero olhar para alguém e sentir-me presa, sentir-me condicionada. Quero olhar para alguém, para ti, e sentir-me livre. Quero que sejas o espelho da minha liberdade, da minha possibilidade de mudança. Quero que sejas uma janela: olhando para ti, desejo vislumbrar um universo de possibilidades, horizontes infinitos, o vasto céu sem limites. Não digas que me amas, está bem? Diz-me que queres ser a minha janela.» Olhou-me durante um instante, em silêncio. Ainda pensativa, ainda mais distante. Depois, virou-se e contemplou o mundo pela janela; esqueceu-me. Poderia responder-lhe que estava enganada, que era exactamente ao contrário; explicar que em cada momento a descobria de novo, a descobria nova, e me deslumbrava; como se a visse pela primeira vez e cada primeira vez fosse mais intensa, mais arrebatadora; explicar que em cada um desses momentos a amava como se fosse a primeira vez. Mas ela olhava pela janela, interessada nos universos infinitos e desinteressada de mim. Para quê falar? Afinal, dissera uma única palavra e tudo se desmoronara; uma frase inteira poderia ser mortífera. Mas o silêncio também o estava a ser. Restava fugir; e foi por isso que me aproximei da janela.