De que serve voar?






Estória em cinco partes para Sílaba Súbita
Fotos de Sílaba Súbita.

Baque

Apesar de terem passado quase trinta anos, lembra-se daquele fim de tarde em que subitamente decidiu regressar a casa por um caminho diferente, um atalho de terra batida que atravessava o deserto de campos e por onde não passavam carros. Lembra-se do enfado que habitualmente sentia ao percorrer os dez quilómetros que separavam escola e casa, alternando dia após dia os três percursos possíveis numa tentativa ingénua de iludir o aborrecimento. Lembra-se que a inesperada escolha de um trajecto alternativo lhe proporcionou a sensação de estar a baralhar o destino e a iludir a rotina. Lembra-se como o facto de ter cedido a um impulso súbito, a um apetecimento, lhe deu prazer e alegria. Lembra-se da inesperada sensação de liberdade, de se ter sentido só e de essa solidão saber bem, por ser uma opção sua, por ser um breve intervalo do mundo e das suas pressas, uma fuga momentânea. Lembra-se de se imaginar como um adulto ao volante do seu carro, de regresso a casa após um aborrecido dia de trabalho, que subitamente decide conduzir sem destino nem pressa, ouvindo música no volume máximo, sentindo que não está amarrado à sua própria vida e controla o seu rumo (é uma chatice as bicicletas não terem auto-rádio, pensou). Lembra-se de se sentir livre naquele ambiente virgem, onde a natureza imperava através dos seus cheiros e cores, dos zumbidos de bicharocos esvoaçantes que existem desde o início do mundo. Lembra-se do suor na testa e do peso na mochila nas costas, do cansaço nas pernas, do prazer de percorrer com o olhar os vastos horizontes verdes cobertos pela luz dourada do fim de tarde. Lembra-se da lentidão do seu avanço na tentativa ingénua de retardar o regresso à rotina do lanche e dos TPCs e da TV e da ansiedade melancólica de ter treze anos para sempre. Lembra-se da suave mas inebriante euforia de se sentir entregue àquele momento, alheado de passado ou futuro, conectado com o presente e nada mais, sentindo essa euforia como algo quase físico, um suave nó no estômago, uma onda de estremecimento, um baque de emoção. Lembra-se de sorrir. Lembra-se de fazer manobras parvas e da bicicleta derrapar e de sentir um momento de pânico. Lembra-se do descontrolo e da queda e do embate no chão rijo por onde nunca passavam carros. Lembra-se do som do baque provocado pela sua queda. Lembra-se da dor. Lembra-se do desmaio. Lembra-se da sensação de medo e confusão, de névoa, de desligamento, de tristeza, ao acordar do desmaio. Lembra-se do silêncio. Lembra-se da lentidão com que consciencializou onde estava e o que acontecera. Lembra-se de erguer um pouco a cabeça e olhar em redor, receoso de que alguém pudesse ter assistido à queda. Lembra-se de se ter levantado lentamente, de tentar sacudir a sujidade da roupa, de erguer a bicicleta. Lembra-se de pedalar com dificuldade de regresso a casa, sentindo dor e medo e espanto e embaraço e confusão e pressa. Lembra-se de pensar: e se não tivesse acordado do desmaio? Lembro-me, apesar de terem passado quase trinta anos.

(38º texto de opinião para o Jornal de Leiria.)